Campeonato do Mundo do Qatar: Será que a tecnologia mudou a essência do futebol?

A tecnologia no futebol não é apenas VAR. Desde a deteção automática de golos até aos dados de desempenho dos jogadores online, o Campeonato do Mundo no Qatar reúne os avanços dos últimos quatro anos e já estamos a ver algumas mutações no jogo.

Por Francisca Dominguez

Quando a FIFA autorizou oficialmente o uso do Árbitro Assistente de Vídeo, mais conhecido como VAR, no Campeonato Mundial de Futebol de 2018, na Rússia, muitos céticos manifestaram-se, preocupados que este desporto popular com a sua essência de vizinhança perdesse o seu atrativo.

Quatro anos mais tarde, no meio do Campeonato Mundial de Futebol do Qatar 2022, ninguém questiona a sua existência e utilização para determinar se um objetivo é de facto um objetivo. Além disso, esta taça de futebol reúne outras tecnologias e inovações que a FIFA tem vindo a testar em campeonatos passados, e já não parece invulgar ver treinadores com iPads, bolas com chips e recriações instantâneas em 3D das jogadas nos nossos ecrãs de televisão.

Abraham García, PhD e professor especializado em futebol na Faculdade de Atividade Física e Ciências do Desporto (INEF) da Universidade Politécnica de Madrid (UPM), diz à ComputerWorld que “não há dúvida de que existe uma revolução tecnológica em todos os sentidos. E não é apenas o VAR, existem também dispositivos GPS que todos os jogadores já estão a usar nas costas, as câmaras que estão a ser utilizadas para extrair os dados, para a análise subsequente dos jogos. Penso que eles estão aqui para ficar.

Qatar 2022, um Campeonato do Mundo com pouca novidade tecnológica

O Campeonato Mundial do Qatar 2022 inclui muitos avanços tecnológicos que a FIFA tem vindo a testar nos últimos anos, mas nenhum tem sido tão perturbador para o futebol como o VAR.

A partir de uma sala de vídeo centralizada em Doha, os quatro árbitros que compõem a equipa VAR têm acesso a 42 câmaras de radiodifusão (oito com superbaixo e quatro com gravação ultrabaixo) em todos os oito estádios através de uma rede de fibra ótica. O assistente de vídeo (VAR) é responsável pela visualização das imagens da câmara principal e revê os incidentes noutro monitor dividido em quadrantes. Em caso de erros em qualquer das quatro situações VAR (objetivos, penalidades, cartões vermelhos diretos ou identidade errada), o assistente principal será responsável pela comunicação com o árbitro no terreno através de um sistema de rádio de fibra ótica.

Os três assistentes (AVAR 1, 2 e 3) apoiam o VAR, um mantendo-o informado sobre o jogo ao vivo, outro na posição de impedimento verificando possíveis incidentes (com a ajuda de tecnologia semiautomática) e o último concentrando-se no sinal de TV e sendo uma ligação entre o VAR e o AVAR 2 no terreno. Finalmente, três outros técnicos estão encarregados de selecionar as repetições e escolher os melhores passes.

O VAR tem também tecnologia semi-automatizada para deteção de fora de jogo, uma ferramenta composta por 12 câmaras localizadas no estádio que não só captam os movimentos da bola, mas também até 29 pontos de dados nos membros e partes do corpo do jogador, 50 vezes por segundo. A isto junta-se uma unidade de medição inercial (IMU) ou sensor dentro da esfera, que envia dados 500 vezes por segundo. Tudo isto, juntamente com a inteligência artificial e a subsequente revisão manual do VAR, torna possível dar a posição exata da bola e do jogador e determinar, de forma mais justa e em apenas alguns segundos, se houve ou não um impedimento. Além disso, uma vez decidido que era uma posição fora de jogo, a ferramenta gera uma animação 3D com todos os dados fornecidos, mostrando a peça em detalhe e sob os melhores ângulos.

Outro apoio tecnológico para os Campeonatos do Mundo desde 2014 é a deteção automática de objetivos. Graças a 14 câmaras de alta velocidade, os árbitros são avisados com uma notificação nos seus relógios no espaço de um segundo se a bola tiver atravessado completamente a linha de golo. Os dados recolhidos pelas câmaras são depois utilizados para gerar uma animação 3D que é exibida no ecrã gigante do estádio e na televisão para recriar a baliza.

Dados, dados, dados

O Campeonato do Mundo é um espetáculo que reúne milhões de espectadores, e a FIFA sabe disso. É por isso que desenvolveu a Plataforma de Dados de Futebol da FIFA, um ecossistema de dados que a organização disponibiliza não só às equipas, mas também aos meios de comunicação social. Desconstrói cada detalhe, por menor que seja, de um jogo.

Faz isto recolhendo dados de jogos ao vivo, incluindo todas as ações no terreno, tais como passes, remates, substituições, decisões de arbitragem, entre outros. Para o fazer, um analista chamado ‘orador’ conta a um ‘escritor’ tudo o que acontece no campo, que o introduz no sistema. Esta informação é verificada por dois “observadores”, que incluem uma camada adicional de dados.

Nesta coleção, também fornece um sistema de rastreio ótico, que reúne dados de posicionamento de todos os jogadores várias vezes por segundo, tornando possível ver onde estão os jogadores, calcular as suas velocidades, distâncias e direção de jogo. Toda esta informação é introduzida na plataforma de dados de futebol da FIFA, que fornece análise e vídeo de cada jogada e ação de cada jogo às equipas, jogadores e meios de comunicação social.

E, claro, existe também uma plataforma específica para os jogadores, os protagonistas do Campeonato do Mundo. Esta é a aplicação FIFA Player, uma das mais recentes tecnologias desenvolvidas pela associação (testada na Taça Árabe 2021), que fornece aos jogadores dados individuais sobre o seu desempenho em campo. Entre as informações a que os jogadores poderão aceder encontram-se dados futebolísticos otimizados (por exemplo, se fizer um movimento para receber ou se pressionar um adversário na posse da bola), parâmetros de desempenho físico (distância percorrida, velocidade alcançada, número de ações de alta velocidade ou um mapa de ação por posição) e inteligência futebolística graças a algoritmos e modelos que funcionam em tempo real (análise da fase de jogo, receção da bola, linhas de superação, etc.). Tudo isto, mais imagens e vídeos do jogo de diferentes ângulos, estarão disponíveis na aplicação no final do jogo.

O futebol está a mudar

A introdução de todas estas tecnologias num desporto que tem sido um dos favoritos do mundo durante décadas levou a mudanças na forma como o jogo é jogado. De facto, uma das coisas que tem atraído a atenção no Qatar 2022 são as extensões que os árbitros estão a dar no final dos 90 minutos: se antes a coisa comum era dois ou três minutos de tempo extra, hoje encontramos sete ou oito, mesmo em jogos onde é quase impossível inverter o resultado (não esqueçamos a estreia da Espanha nesta edição em que, apesar de terem vencido a Costa Rica por 7-0, acrescentaram oito minutos extra ao jogo).

Segundo o investigador e professor do INEF, isto acontece devido ao elevado nível de intermitência que os jogos têm agora, tanto por causa do VAR como da nova regra de cinco mudanças que vieram depois da pandemia. “Estamos a ver que os trechos são muito longos, o que penso ser também uma coisa boa, pois há mais interrupções, porque o jogo está mais bloqueado e há muitas vezes que isto faz com que os trechos pareçam injustos”, diz García.

“Haverá coisas que serão boas, por exemplo, será possível analisar mais aquelas disputas que têm mais a ver com algo importante como uma penalização, um envio, um cartão vermelho. É aí que eu penso que o VAR se soma, para que esses detalhes não escapem pelas fendas. E penso que o lado negativo é a paragem, a intermitência, o facto de o jogo se arrastar por demasiado tempo e muitas vezes ficar frio. No final, todas estas coisas estão aqui para ficar, por isso é preciso aceitá-las”, disse ele.

“Não nos esqueçamos que podemos ter tudo sob controlo, mas o que se passa com o futebol é que são 11 contra 11”.

Esta intermitência não só influenciou o timing dos jogos, mas também toda a estratégia de jogo dos treinadores. “As ações estão a tornar-se muito mais explosivas, muito mais rápidas e de menor duração. O futebol, para o dizer de forma um pouco grosseira, está a aproximar-se um pouco mais do futebol americano. Há uma ação explosiva, e depois há uma paragem. São esforços de intensidade extremamente elevada, os jogadores são capazes de correr a velocidades incríveis”, explica o antigo treinador do Marbella FC, destacando o caso do francês Kylian Mbappé.

Para levar os jogadores aos seus limites físicos, peritos e treinadores também se voltaram para a tecnologia. “Os jogadores estão agora a ser medidos sobre o que fazem no treino, mas também sobre o que fazem antes e depois do treino, e agora estão a medir o que fazem ao intervalo”, diz García, algo que é feito graças a um anel que mede o ritmo cardíaco.

No entanto, o perito adverte: “Não nos esqueçamos que se pode ter tudo muito controlado, mas o que se passa com o futebol é que são 11 contra 11 num grande espaço, e é o desporto mais complexo que existe porque há muitas relações entre colegas de equipa e contra adversários. Pode ser como uma máquina, mas no final tem de se colocar a bola na baliza”.

Neste sentido, García, que se dedicou à investigação no futebol com inteligência artificial e técnicas de aprendizagem de máquinas, está no campo daqueles que preferem deixar a tecnologia para casos muito específicos, por exemplo, para o scouting ou recrutamento de jogadores, pois permite características de filtragem (velocidade, número de jogos jogados, valor, etc.) dos futebolistas de acordo com as necessidades do treinador. “Quando os anos passarem, as novas gerações chegarão e a tecnologia já lá estará. Suponho que isso também terá acontecido com aqueles que vão ao banco. Acredito que não devemos perder a essência de tudo o que é implementado e, para mim, a essência tem a ver com o ritmo do jogo”, diz ele.

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